Lua em peixes.
De como seus olhos verdes cor de mar me faziam rodar em qualquer ciranda sem sequer pensar em desistir do dia, da vida, de tudo. Até porque naquele tempo não havia com o que nos preocupar. Sempre a postos esperando uma pela outra, se ela caísse, eu a ajudava a levantar, e vice versa. Lembro que no finalzinho das aulas sempre mandávamos recadinhos no papel uma para a outra. Eu escrevia: melhor amiga (coração), desenhava corações e coloria-os por dentro com canetinha fina vermelha, o coração sempre acabava rasgado no fim da aula. Ela sempre me respondia: teu coração rasgou. mas o que tá aqui ó: (coração) e desenhava um coração bem grandão, sabe? Daqueles que cabem uma mão fechada dentro, como se ela sempre soubesse que esse é exatamente o tamanho do meu coração. Na sua folha sempre haviam raízes brotando do nada, raízes azuis, e também haviam detalhes rosas, folhas de planta rosa, cobertas com uma canetinha, também. E eu ficava muito tempo atenta aquela folha do caderno dela, nunca folha dos cadernos alheios. Ela é peixes, não muito organizada, não muito materialista, mas vaidosa que só ela! Sempre dando um trato nas unhas aqui, uma ajeitadinha nos dentes ali, um corte no cabelo acolá. E eu sempre observando, admirando, me perguntava como uma pisciana me encantava tanto! eu acordava as oito da manhã todos os dias, abria no canal 17 e aguardava a vez só seu signo aparecer na parte superior da tela. Lia empolgadíssima, anotava o que dava! Depois, mais tarde, na mesma tarde, corria e contava pra ela. Ela adorava, ouvia lisonjeada, ela ama ser pisciana! Sempre me disse isso com um ar de menina pequena loura que acha que a beleza não importa tanto assim, mas importa sim! Ela se jogava na cama de solteiro, com cordões, brilhos e adesivos gastos na cabeceira de ferro pintado de branco e dizia: será que ele vai me ligar? Eu balançava a cabeça dizendo que sim, que com certeza ligaria, que ele tava totalmente na dela, e ela só tinha dez anos naquela época. No meio do ano de 2005 a canetinha vermelha estava no fim, descobri numa tarde lotada da ausência de Lu.Ana que estava agora vendo um filmezinho na casa de algum amigo da sexta série. Eu lembro que me convidaram, e eu disse que não, que muito obrigado, tinha afazeres, deveres, tinha treino, tinha jogo, que não sobrava tempo, que ainda tinha que lavar os cabelos, e fui detalhando cada vez mais um dia bem filho da puta, um dia que deixa qualquer um louco, principalmente sem ela. E então foram se afastando, disseram que tudo bem, que ficava pra próxima, que eu tivesse um bom dia. E na hora do intervalo desse mesmo dia sentei nas arquibancadas, lembro que ela veio com uma amiga, chegou próximo a mim, próximo ao primeiro degrau da arquibancada e disse: desce! Eu acenei que não. Ela então virou-se pra outra e a encarou. A garota saiu. Ela subiu, sentou ao meu lado e perguntou se eu não ia mesmo... Eu disse apressada que não tinha tempo, que tinha a natação,os trabalhos, os telefonemas, meu guarda-roupas pra arrumar, umas coisas pra escrever na agenda e não ia dar nada certo eu largar isso tudo por um filme que eu podia alugar. Ela: Mas vai todo mundo! A Letícia, a Brisla, a amanda, o Tariq, o Maicon, o lucas, a Lorena, a Sarah e eu fui logo cortando: não gosto muito desse povinho não, deixa pra próxima. Ainda não havia olhado em seu rosto, e quando olhei ela disse: e tempo pra mim, tu tem? Fui tomada por um sentimento tão ruim, um sentimento de raiva, de conclusão de que tudo que eu havia feito para e por ela até hoje, todos os cds ouvidos forçadamente, porque eu ouvia engenheiros e ela Kelly key, e eu ouvia Kelly key e ainda balançava os braços e dizia: essa é minha! Que todas as palavras de consolo ditas, todas as tardes em silêncio ouvindo somente a voz dela misturada com o barulho agonizante que o ventilador amarelo dela fazia, mas que ela amava, que não podia trocar, que ele era lindo, que era um enfeite novinho e bababás. Como boa pisciana, não se importava com detalhes, pensava muito e quase sempre ficava vaga as minhas histórias. No começo da tarde tudo parecia correr bem, mas quando liguei na rádio para procurar ouvir alguma coisa nova eu ouvi uma mulher dizendo o seguinte ''todas as cartas de amor são ridículas, não seriam cartas de amor se não fossem ridículas'' e lembrei que eu também escrevia cartas, não de amor, mas ridículas. E eu não entregava por medo que a pessoa achasse ridícula, apesar de eu já saber que todas as cartas de amor são ridículas eu não sabia explicar para que as outras pessoas também enxergassem como eu. Até que essa tal mulher da rádio disse isso, e eu parei, e eu corri e peguei vários papéis, tinta, pincel, lápis de cor, canetinha, tesoura, cola, tudo que é necessário para se fazer um trabalho da escola quase impecável. Pensei em começar com o nome dela, depois com a data, e depois, ainda pensei em desenhar um coração. E essa ficou, ia desenhar um gigante coração. Na hora de pintar, deu-se a tragédia: A tinta da canetinha acabou. E agora? De que cor seria meu coração? a carta ficaria horrível, achei melhor ir comprar uma nova pasta de canetinhas só pela vermelha. Por que, de alguma forma, há coisas que foram feitas para serem vendidas juntas e você não encontra pra vender separado em nenhum lugar. Por exemplo, acho que aqui e em Paris canetinha só são vendidas em conjunto. É como se eu sempre fosse precisar das doze, mas não é. Correndo na rua, o vento fazendo o cabelo bater na cara, a franja cobrir os olhos, o sorriso todo torto, corria cada vez mais rápido, o sol das duas da tarde raxando a cabeça, eu sentia o suor entre os cabelos, mas não pararia de correr para amarrá-los. Antes tivesse parado, na próxima esquina uma calçada alta me fez voar pra estrada e eu cai, e o sangue começou a sair do meu joelho. Então eu voltei pra casa correndo, e sentei no chão chorando, comecei a limpar o sangue com um papel, e redescobri ali uma cor tão mais intensa que a da canetinha, mas não era sangue suficiente para um coração gigante, então cortei 1/3 de uma folha A4 e desenhei um coração do tamanho da minha mão fechada e comecei a pincelar vagarosamente com o dedo a ferida e logo em seguida o coração, ficou um brilho. Secou na hora, e só depois de tomar banho e deitar no sofá só de calcinha e camiseta com o desenho na mão, liguei o rádio e deixei tocar até as cinco, chorei duas vezes, ri ao olhar pro desenho e ver que aquilo era meio nojento, e que ela talvez não fosse gostar. Cinco da tarde, em ponto, ela chegou. Nunca uma saudade foi tão grande, ainda hoje, olhando para trás e reavaliando minha vida, nenhuma saudade foi tão pua e digna como foi aquela. Antes tivesse ido com ela pro cineminha caseiro, antes tivesse pedido para que ela não fosse, antes qualquer coisa perto dela, mas a ausência dela me doeu uma eternidade, e quando ela chegou e me viu naquele estado caiu na risada, mas eu fiquei durona, muito séria, só que quando ela sentou e ficou finalmente séria, eu cai na gargalhada, e rimos as duas, depois eu disse bruscamente apontando para a ferida: culpa tua! Ela balançou a cabeça em gesto de negação: miiiinha não! sua! se tivesse ido comigo... Eu disse a história toda, disse que não dava certo aquilo, que não ia dar, que ela iria pra casa deles sempre e que uma hora brincar comigo e me ouvir e falar pra eu ouvir ia ser chato demais, piegas demais, infantiloide demais! E ela disse não, menina, isso não vai acontecer! Eu estiquei e busquei o papel sobre a mesa, ela já havia o visto desde que chegou, e sei que ela sabia que era para ela, mas ela nunca foi inconveniente, ela esperou como se não soubesse, sonsa. E sabia, eu entreguei e ela fez cara de assombro: pra miiim? Eu me apressei em explicar que era sangue, e de onde havia saído ela já sabia, mas contei a história toda pela segunda vez incluindo a cena do desenho, ela começou a chorar e perguntou o que ela podia fazer para que eu a perdoasse, e ficamos até sete da noite desenhando corações de todas as cores, menos de vermelho. Depois disso decidimos estudar no turno da tarde, onde haviam mais meninos bonitos, mais futebol pra mim, mais vôlei pra ela e mais tempo para nós duas! E passamos, e os corações sumiram dos nossos cadernos, mas não da minha rotina, pois mantinha sempre um de seus corações, rosa pink, bem na contra-capa do meu caderno. Veio então o meu primeiro beijo, com um carinha que eu era muito afim, e de uma forma tão canalha, que hoje olhando para trás não me assusto por ser tão igual aquele cara. E vieram épocas de festas no colégio, feiras de ciências, passeios e aulas de campo, e vieram mais pessoas, mais gente conhecida, mais tempo. E vieram então as escolhas, ela escolhia o príncipe encantado, eu escolhia não gostar de ninguém. Ela começou a usar Humor 1 e eu usava Acordes, sem pena. Ela ouvia simple plan e eu avril lavigne, ai evoluímos mais e namoramos, menos vezes na semana juntas, menos sorvete, menos suco, menos caminhadas, menos natação, menos reforço juntas, mas ainda sim, na hora da aula trocávamos recados, ela contando do seu namoro, eu contando da minha mudança. E mudei, mudei pra avó. Ela me visitava todas as vezes que eu pedia, mas com o tempo fui pedindo menos, e de repente adoeci e não tive como levantar pra ligar, podia me esforçar um pouco mas acho que não queria que ela me visse com aquelas olheiras enormes e cabelos assanhados, e passou-se muito tempo sem que eu a chamasse, e achei que seria inconveniente chamá-la, mas depois de algumas palavras ditas por mim perante juízes conseguimos dinheiro suficiente pra comprar uma casa e mobiliar toda toda. Mudei pra longe, e dessa vez, nos separamos por dois anos, e não havia contato, não havia nada. Nenhum telefonema, nenhuma carta, e quando fiz um e-mail corri e fui na casa dela, bati e ela apareceu na varanda. Eu lembro que eu esperava que ela saísse correndo escada abaixo e me abraçasse com todas as forças que ela tinha, mas ela apareceu na varanda e jogou a chave, como se eu tivesse estado ali no dia anterior. E subi atordoada mas quando passei pela porta ela me tascou um beijo na bochecha e um abraço de urso que eu não consegui desgrudar até ela perceber que eu não estava a vontade. E depois daquele dia a euforia de tê-la por perto me reanimou, e passei a levar os seis dias da semana antecedentes ao domingo pensando nela, e em como seria meu domingo com ela. E era sempre a mesma coisa, suco, internet, video game, filme, cama, novidades, sono. Lembro que quebrei a cama dela quando fui encenar a ponte de Londres caindo em uma das nossas intercessões entre a euforia de se encontrar e a tristeza de se despedir, um intervalo chamado tédio, onde eu fazia a mimica e ela se esbaldava de rir, e eu cansava mas não queria parar porque ver o seu sorriso já sem aparelho e com aqueles cabelos mais loiros do que nunca me deixavam extasiada. Mas aí eu fui ficando em casa, fui saindo com os vizinhos, fui conhecendo a galerinha do colégio novo, e fui conhecendo o álcool e fui conhecendo a cocaína e fui conhecendo o benflogin e a maconha e fui também provando doces e indo a festas, depois comecei a usar sutiã de renda e tirar a blusa em qualquer lugar fechado com um cara dentro, e quase trepava mas não o fazia, vestia a blusa e saia com aquela cara de cínica buscando prazer e maturidade num bar largada, e aí vieram as mulheres, surfista,jogadora de futebol, cabelinho encaracolado, vocalista de uma banda, carinhosa, deu flores anel, mas eu não quis, fiquei com outra, uma canceriana se não me engana, cantora, compositora, que se achava muito dona de si, muito marrenta, mas muito amável, e engraçada. Cabelos roxo, calça jeans escura e uma camisa qualquer, e aí eu preferi ela + cocaína do que uma namorada apaixonada. E aí fiquei sem nenhuma, e não me importei. E aí poucos meses depois a paspalha incrivelmente encantadora apareceu numa rede social minha, e aí vieram as conversas, os apelidos carinhosos, os corações(sempre traiçoeiros), as descobertas, as lembranças, não nos lembrávamos! Como podíamos não lembrar uma da outra? Eu e ela namorávamos C(K)amilas quando ficamos a primeira vez, e as duas descobriram, e ali eu já percebia o quão má eu poderia ser se tratando de mulheres. E estava tudo muito bem até uma noite qualquer em que a dona(agora loira e definitivamente comigo) terminou, terminou o quê? Nada, passamos pouco mais de uma semana e não tínhamos nada, mas em mim havia muita vontade de viver muitas coisas ao lado dela, corri atrás, mas não muito. E aí veio a fase de esquecimento, onde tudo me fazia lembrar. Comecei a escrever para ela, ouvir músicas para ela e principalmente, a chorar vendo qualquer foto dela. Rejeitava convites, ligações e principalmente visitas. Mas aí comecei a recusar as lágrimas, as velhas músicas de Elis e Cristina, ignorei Andrea e Cazuza, ignorei os gritos ensurdecedores de Zombie bem alto dentro do apartamento pequeno. E vieram as flores, Caetano, Gadu, veio um novo amor. Veio a outra, a que permanece, a que eu não vou perder nem pra distância. A que se parece comigo e com todas as que vieram depois dela, porque foram muitas, e eu buscando sentir em cada uma o cheiro que eu sentia na curva do pescoço dela, mas eu não sentia! A busca cansava e eu me casava. Mas Lu.Ana nunca se foi, e nunca se vai. Ainda tento alguma proximidade, mas não dou sorte. Esqueço, fingir não a vejo me parece a melhor solução. Mas já passei horas na frente de suas atuais fotos, bem modelo, vestidão longo, formatura, princesa, namorando, 17 anos, estudiosa, fazendo os melhores vestibulares, se cuidando e tal, nunca drogada, nunca bêbada, nunca uma canalha. Sempre sonhadora. E eu o oposto, estou mais pra vilã do que pra princesa, quase 18, já drogada, já bêbada, já entupida de porra e enjoada de mulheres novas, perfumes femininos enjoativos novos, saias novas!!! Só que eu sinto que, em algum lugar, um dia, vamos os cruzar e conversar horas sobre as nossas vidas e ela vai saber de mim e como quando tínhamos dez anos vai querer experimentar como é beijar uma menina, como é fumar maconha e como é tomar um porre de vodca, e eu vou apresentá-la, a diferença é que, com dez anos, ela experimentou subir na árvore que eu subi e caiu. Talvez tenha sido por isso que ela me abandonou, que nos abandonamos, porque ''eu não tive mãos para ela.'' Mas eu fiquei forte e hoje a seguraria com meu coração de aço e minhas mãos calejadas de experimentos.