Os olhos cansados de ver pupilas dilatadas de paixão. Os ouvidos cansados de ouvir as mesmas músicas. E uma preguiça do tamanho do universo de procurar saber como andam as coisas nesse mundo de marcianos&terrestres. Os olhos inchados de chorar, e de repente, como se nada mais valesse a pena, buscou a gilete na segunda prateleira da estante do banheiro, a perna coçava, as mãos não tremiam mais, nenhum gesto brusco, há muito a sensibilidade o abandonara. Poderia ser só mais uma sessão de barbear, mas o barbeador permaneceu na última prateleira, o olhar chegou a tentar passar por ele, e antes mesmo de chegar ao vidro azul viu o vidro vermelho de um perfume amargo que ela gostava de usar exclusivamente pra festas da noite o tomou a atenção. Ela pronunciava com esse ar de menina que que está indo para a segunda balada de toda a vida. Festas-da-noite. Sentia saudade, e tristeza também. Mas tudo tão manso, estava tudo tão manso, e num impulso, pressionou a gilete sobre a carne pálida e seca do pulso esquerdo. Lembrou dela dizendo que não conseguiu ir embora para nunca mais voltar por causa de um de seus romances antigos por que fez o corte na horizontal, e que ele deveria ser feito na vertical. Ele nunca decorou a diferença entre os dois, tinha dificuldade em lidar com pares. Sentiu medo que ela se arrependesse de ter ensinado isso a ele um dia, quando sentada na janela de seu novo apartamento, fosse visitada pelas lembranças de um amor que se fosse embora deixaria uma sede que jamais poderia ser saciada, e sedes assim não cicatrizam ou são substituídas. Não sabia fazer narrativas, não sabia atender a telefonemas de desconhecidos, nem conhecidos. Mas não queria ser mais um dos participantes dos que não entendem que a vida é mesmo pra ser vivida na raça, é pra ser todinha jogada na grama, mesmo que não haja grama, só terra. Compreendia, enfim, que a vida era isso, era estar prestes a arrastar a navalha no pulso, e não arrastar. Era superar aquilo que chamam, os capitalistas, de amor. E então, ainda inerte na leveza dos últimos dias, buscou Ângela Ro Ro no meio das fitas e pouquíssimos CDs, não encontrou, ela levou Ro Ro, mas deixou Caetano, e foi Caetano cantando a noite inteira ao pé do ouvido esquerdo. Ela sempre soprava as declarações do lado esquerdo, é o lado que envia pro lado direito e no lado direito acontece o encantamento. Ela conhecia tudo, tudinho que ele queria, ela foi embora e disse que um dia ia voltar, e se será, será.

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